sexta-feira, 29 de abril de 2011

Tortura e revisão de Lei da Anistia voltam a ser discutidas no Brasil

Reproduzo entrevista realizada pelo Jornal Comunicação, Paraná, com o presidente do grupo Tortura Nunca Mais, Narciso Pires.

Reportagem Guilherme de Souza
Edição Vanessa Prateano

http://www.jornalcomunicacao.ufpr.br/node/5208

Há cerca de três meses, o jornalista americano Christopher Hitchens submeteu-se a um tipo de tortura praticado em prisioneiros de guerra no Iraque, a chamada simulação de afogamento. Quanto tempo ele suportou? Onze segundos. Desconsiderando a cordialidade dos ‘torturadores’, a possibilidade de se interromper a sessão e a ausência de pressão psicológica, Hitchens conseguiu ter uma noção mínima do que sofre uma vítima de tortura. No governo de George W. Bush, a tortura é encarada como um procedimento normal, uma forma autêntica de se obterem informações de supostos terroristas. Hitchens queria mostrar aos americanos que o método utilizado pelos militares nos territórios ocupados e em Guantánamo, chamado eufemisticamente de ‘interrogatório coercitivo’, era, simplesmente, tortura. O relato do episódio foi publicado na revista americana Vanity Fair.

No Brasil, o tema voltou a ganhar destaque em agosto, após declarações do ministro da Justiça, Tarso Genro, a respeito da punição de torturadores e assassinos da Ditadura Militar (1964 - 1985). Seria uma atitude de revanchismo ou um enfrentamento necessário do passado? As Forças Armadas, por via das dúvidas, vieram a público exigir retratação do ministro e do presidente Lula. Não bastasse essa polêmica, surge a discussão a respeito da Lei da Anistia, decretada em 1979 para anistiar pessoas que cometeram crimes políticos durante o regime de exceção. Quem deve receber o benefício da anistia? Para responder a essa e outras questões, o Comunicação entrevistou o presidente do grupo Tortura Nunca Mais Paraná Narciso Pires.
Militante desde os 18 anos, Pires viveu na clandestinidade por causa de seus ideais políticos, foi preso seis vezes e obrigado a largar o curso de graduação (Jornalismo na UFPR). Hoje, aos 59 anos, luta pela punição de quem cometeu atrocidades em nome da Ditadura.

Comunicação: Recentemente, a discussão a respeito da tortura ganhou destaque com uma declaração do ministro da Justiça, Tarso Genro, a respeito da punição a violadores de direitos humanos durante a Ditadura. Como o senhor vê o assunto?
Pires: Boa parte da polêmica se deve ao pacto de silêncio estabelecido entre os três poderes a respeito dessa punição. Há quem encare a questão como revanchismo. Eu discordo. Punir esses criminosos é necessário à democracia e à Justiça. Quando se fala em abrir processo contra torturadores, uma resposta comum é que “os insurgentes também devem ser julgados”. Mas isso já aconteceu! Foram perseguidos, presos, torturados e, em muitos casos, assassinados.
A quebra desse silêncio só pode ser feita com pressão popular, e, para isso, é necessário que as pessoas conheçam a História. Nosso grupo, a esse respeito, pretende organizar abaixo-assinados pela abertura de processo contra torturadores e assassinos do Regime. O que o ministro propôs foi o rompimento com o pacto de silêncio. Uma superação do medo de enfrentar a questão.

Comunicação: A que se deve esse medo?
Pires: Existe receio de se criarem ‘indisposições’ com as Forças Armadas. Ora, os criminosos de que estamos falando devem ser punidos enquanto indivíduos. Não se trata de punir as instituições a que pertencem. Encará-los como representantes das Forças Armadas é um erro. Outra coisa que se diz é que estamos “mexendo em feridas”. Absurdo. Desde quando punir criminosos é ‘abrir feridas’? Quem defende essa gente, além dela mesma? Se há alguém, que exponha seus argumentos.

Comunicação: Qual a sua opinião sobre revisar a Lei da Anistia?
Pires: Acho desnecessário. Em primeiro lugar, porque ela não protege os torturadores e assassinos. Estes permanecem impunes devido ao pacto de silêncio em torno do assunto. Além disso, diz-se que a Lei protege insurgentes que pegaram em armas e cometeram atos de terrorismo. Não é verdade. O segundo parágrafo do artigo primeiro diz claramente: excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
A Lei da Anistia diz respeito a crimes conexos aos políticos. Por exemplo, eu fui condenado por tentar rearticular o Partido Comunista Brasileiro e tive de viver na clandestinidade, com documentos falsos. Esse último crime é considerado conexo, porque estava diretamente relacionado com a luta política. Em outra situação, eu permaneceria condenado por falsidade ideológica. A pessoa anistiada passa a ser considerada réu primário. Em outras palavras, se cometer um crime, não é considerada reincidente.
Se as condenações feitas por motivos políticos permanecessem, os insurgentes teriam dificuldades sérias mesmo após o fim da Ditadura. Além disso, mesmo pessoas completamente inocentes foram condenadas, por confissões feitas sob tortura. A Lei protege essas pessoas.

Comunicação: O que define a tortura?
Pires: Muitas vezes, o cidadão é vítima de violência policial. Esse tipo de agressão não se configura como tortura. Esta, na verdade, é entendida como violência física, psicológica e moral cometida para se obter confissão. Um depoimento que, por ser obtido com base no sofrimento, não tem valor. É sabido: o torturado pode acabar confessando crimes que não cometeu, porque cede ao sofrimento infligido. E isso não ocorreu apenas durante a Ditadura. Hoje em dia a prática permanece.

Comunicação: É comum o uso da tortura em delegacias e presídios?
Pires: Sem dúvida. A tortura, no Brasil, frequentemente substitui os métodos investigativos de verdade. Foi incorporada à cultura do País. Lembro-me de um debate do qual participei, no rádio, sobre o uso da tortura hoje em dia. Ouvintes telefonaram, indignados, porque o Grupo reunia “defensores dos direitos de bandidos”. Por um lado, defendem os que foram perseguidos pelo Regime. Por outro, acham que a prática se justifica em caso de criminosos.
A população se engana quando pensa que os verdadeiros bandidos são torturados. Desses, a polícia tem medo. Receio de torturar e sofrer retaliação mais tarde. Traficantes influentes, por exemplo, estão protegidos por ameaças. Já os criminosos menores, simples, são torturados. Às vezes, sequer são criminosos mesmo. Às vezes, são pessoas sem defesa, usadas como bode-expiatório. Enquanto isso, bandidos de verdade escapam da tortura, mesmo quando são presos.
“As autoridades eram muito corajosas na hora de arrancar confissões. Afinal, éramos imobilizados e impedidos de nos defendermos. Na hora de assumir o que fizeram, a história é outra. O pior é que essa prática deplorável não atingia apenas opositores do Regime, mas também pessoas que não tinham qualquer relação com a luta política.”
Antônio Urban, professor do curso de Informática da UFPR. Participou do movimento Política Operária; foi detido e torturado por 45 dias durante a Ditadura
Comunicação: Como é a atuação do grupo “Tortura Nunca Mais” no Paraná?
Pires: Nós militamos não apenas contra a tortura, mas contra toda forma de violência e também pelo respeito total aos direitos humanos: políticos, civis, econômicos, sociais, culturais. Nossa proposta central é a defesa dos direitos humanos e a preservação da memória histórica, por meio da divulgação dos atos cometidos durante o período da Ditadura Militar. Para isso, organizamos palestras, exposições, manifestações, concessão de entrevistas.
É uma luta contra a impunidade, essencialmente. Contra esse sentimento que dá base aos mais diversos atentados à dignidade humana. Quanto à tortura, lutamos pela responsabilização criminal dos torturadores e assassinos do Regime Militar, e também contra a prática na atualidade.

Comunicação: Como o grupo se mantém?
Pires: Pagamos do nosso bolso as campanhas que fazemos pelos direitos humanos, porque não recebemos nem queremos receber verbas de instituições exteriores. É sabido que depender de financiamento externo limita a liberdade de opinião de qualquer grupo. É uma forma de não nos submetermos a ninguém.

Comunicação: O Grupo acompanha casos de tortura atualmente?
Pires: Houve um tempo em que acompanhávamos, mas não o fazemos mais. Se não temos mecanismos eficientes de proteção a pessoas que sofreram nas mãos de autoridades, simplesmente divulgar casos para a mídia se torna arriscado.
A imprensa vem, faz estardalhaço, e o caso é esquecido depois de certo tempo ou, quando resolvido, não ganha muito destaque. Após a divulgação, a pessoa se torna sujeita a represálias da polícia. Para que o acompanhamento funcionasse, precisaríamos de uma proteção eficiente à vítima. Oferecer abrigo, garantir imunidade contra retaliações, entre outros mecanismos. Somente o Poder Público teria a possibilidade de montar uma estrutura dessa natureza.
Outro problema envolvendo a denúncia é que ela só é feita depois que o ato foi cometido. O estrago já foi feito. Os traumas, o sofrimento… São conseqüências que somente quem sofreu pode entender direito.

Comunicação: No filme Tropa de Elite, cenas de tortura provocaram risos em muitas pessoas. Isso mostra que há quem considere a tortura como algo banal?
Pires: Não apenas banal, mas necessário. Para muita gente, a tortura é um método válido de investigação. Isso é um absurdo. Há uma pressão popular pela ‘solução’ de crimes, o que frequentemente leva as autoridades a não investigar os casos com seriedade. Não importa se os resultados são verdadeiros, desde que satisfaçam a população. A mídia tem grande influência nesse fenômeno. O estardalhaço feito a respeito de crimes brutais comove as pessoas e as faz clamar por ‘justiça’. É uma pena que o que venda seja o espetáculo. Não assisti a Tropa de Elite, mas reconheço que deve seu sucesso em grande parte à banalização da tortura.
Narciso Pires: " O Brasil nunca será um país soberano
se não souber encarar o passado".

Comunicação: Quanto a abusos cometidos durante regimes militares, como outros países lidam com o problema?
Pires: Também na Argentina fez-se um pacto de silêncio. Ainda no governo Raúl Alfonsín (1983 - 1989), entrou em vigor a Lei do Punto Final, que impedia a punição de torturadores e criminosos por seus atos durante o regime de exceção. Somente no governo Kirchner (2003 - 2007) ela foi revogada, pois se chegou à conclusão de que era inconstitucional. Hoje, há torturadores, mesmo generais renomados, cumprindo pena na prisão.
No Chile, o ex-ditador Augusto Pinochet morreu sob prisão domiciliar. Só não foi para a cadeia por causa da idade avançada. Também o chefe da DINA [Dirección de Inteligencia Nacional, polícia política criada durante a ditadura de Pinochet], Manuel Contretas, foi condenado à prisão perpétua por duplo homicídio cometido por motivos políticos.
No Uruguai, dois presidentes do regime militar estão na cadeia pelos crimes cometidos contra os direitos humanos. O Brasil, talvez, é o único grande país da América Latina em que os torturadores se mantêm impunes.
“A tortura não se limita à agressão física: o moral e o equilíbrio psicológico da pessoa também são atacados. Diziam-me coisas do tipo ‘ninguém sabe que você está aqui, podemos fazer o que quisermos’. A pressão é absurda.
Na última vez em que fui preso, eu ainda estava cumprindo pena, só saía da cadeia para trabalhar. Estava em casa quando as autoridades chegaram. Minha esposa tentou impedir que me levassem, e foi levada junto comigo para o presídio do Ahú. Por sorte não a impediram de fugir depois que chegamos. Novamente, fui interrogado e torturado”.
Francisco Luís de França, aposentado, preso pela primeira vez em 1949 por reivindicar direitos aos funcionários públicos. Durante o Regime Militar, foi detido mais quatro vezes. Atualmente, participa do grupo Tortura Nunca Mais – PR

Comunicação: Como o senhor encara o resgate histórico das lutas travadas durante o Regime?
Pires: Tenho muito claro que uma sociedade que se nega a rever seu passado não tem futuro. O futuro do indivíduo e da sociedade está diretamente subordinado à capacidade de se trabalhar a própria história.
É preciso entender o que foi o golpe militar, até para que não se repita. A responsabilidade, aliás, não cai apenas sobre militares, mas sobre civis também envolvidos com o golpe. Quem são essas pessoas? O que as levou a tomar o poder? Quais as conseqüências do Regime Militar para o País? É isso que devemos discutir e analisar.
Para nós, quanto mais pessoas tiverem consciência do ocorrido durante os 21 anos da Ditadura, mais ‘vacinado’ estará o País contra os erros cometidos no período.
Hoje, os insurgentes têm seus méritos reconhecidos, enquanto os torturadores permanecem na sombra, como ratos intocáveis, com medo de se expor. Porque sabem que são criminosos, bandidos. Nós não temos medo de discutir nossas atitudes contra o Regime e a favor da liberdade.
Quem nos ouve reconhece a legitimidade desse resgate da memória histórica. Ficam indignados com as represálias a presos políticos, que não são vistos como criminosos. Grandes intelectuais, pessoas célebres estavam entre eles. Dias Gomes, Caetano Veloso, Henfil, até Lula e FHC foram presos e exilados. As pessoas não os viam como bandidos. O Regime via, e divulgava essa imagem. Mas isso não pegou.

Comunicação: Algumas pessoas condenam a prática de seqüestros por parte de opositores da Ditadura Militar.
Pires: O seqüestro foi um ato desesperado para libertar companheiros que estavam presos. Indivíduos que, se não saíssem da cadeia, seriam mortos. Poucas pessoas, de fato, foram seqüestradas: o embaixador americano na época, o cônsul japonês, o embaixador alemão e o embaixador suíço. Todos, de alguma maneira, vinculados à manutenção do Regime. E nenhum deles foi agredido, torturado ou coisa parecida. Foram libertados, todos, mesmo no caso em que nem todas as exigências de libertação foram cumpridas.

Comunicação: E quanto ao uso de armas? Era uma forma de ‘pagar na mesma moeda’?
Pires: A violência, seja pelo uso de armas, seja por atentados, não fazia parte de uma postura generalizada da esquerda. A maioria, de fato, não achava que a truculência levaria à derrota dos militares. Não se tratava de pagar na mesma moeda. Considerávamos o governo militar como um inimigo, que havia usurpado o poder, e que devia ser vencido. Em raríssimos casos, a violência foi usada como estratégia de combate.
Mesmo assim, as armas eram um recurso muito menos eficaz do que as palavras. Tanto é verdade que nós, insurgentes, ganhamos. Fomos militarmente derrotados, e politicamente vitoriosos. Porque, embora nos faltasse força militar, contávamos com organização, com a verdade e com o apoio da população. Ainda assim, eu não fui contrário ao uso de armas, se ajudasse a vencer o Regime.

Comunicação: Nos Estados Unidos, a tortura contra presos das guerras do Oriente Médio é sutilmente aceita…
Pires: Sutilmente? Não. É uma aceitação generalizada mesmo. Os Estados Unidos não são signatários de pactos internacionais contra a tortura, como a Corte Penal Internacional [que pune violações aos direitos humanos]. Pelo contrário, fizeram o possível para que ela não existisse. São o maior violador dos direitos humanos do mundo. A existência de Guantánamo devia ser uma vergonha para eles.
O povo americano, hoje, não é respeitado por sua postura, mas ridicularizado. Aliás, quando eles falam em direitos humanos, o resto do mundo ri. Quando acusam Cuba de violar os direitos humanos, tenho vontade de rir. Guantánamo, mantida pelo governo dos EUA, é um dos maiores centros de tortura do mundo. Represálias contra violações dos direitos humanos devem ser feitas por instituições e pessoas justas. Não devem ser uma atitude hipócrita.

Comunicação: Recentemente, um jornalista americano se submeteu a tortura, para descrever a experiência. O senhor acha válido?
Pires: Ele tentou reproduzir uma experiência de tortura? Isso é impossível. Não se trata apenas de causar sofrimento ao torturado. O medo, a pressão psicológica, a certeza do sofrimento e da morte. Só quem viveu essa experiência pode entendê-la. A maneira como a pessoa é afetada depende de sua própria complexidade. Não é algo que possa ser analisado em laboratório.
“O PCB (Partido Comunista Brasileiro) era considerado extremamente perigoso pelas autoridades e qualquer ligação com ele era motivo de prisão. Passei dois anos preso sob a acusação de tentar rearticulá-lo, sofrendo tortura psicológica frequentemente. Uma das principais era me colocar para testemunhar outras sessões de tortura. A truculência era algo inacreditável.”

Comunicação: Como deve ser feita a punição dos torturadores?
Pires: Essas pessoas são criminosas e devem ser punidas como tal. Cometeram atos vergonhosos, que nem a luta política pode justificar. Além disso, sua punição deve ser feita por instituições democráticas soberanas, sem medo de represália, porque não se trata de revanche, mas de justiça. O pacto de silêncio demonstra falta de soberania por parte das instituições legais.
Uma coisa que não podemos aceitar, por exemplo, são as comemorações do dia 31 de março. Quem incentiva essa atitude tem, a meu ver, uma formação golpista, perigosa para as instituições democráticas. Essa gente deve ser afastada.
Eu não acredito que a maioria dos militares seja golpista ou saudosista do Golpe de 64. Muito pelo contrário, tenho certeza de que quase todos não têm nada a ver com esse ato. Acontece que os torturadores e criminosos do Regime Militar tentam aparecer como representantes das Forças Armadas. Enquanto isso, os insurgentes representam o desejo de liberdade por parte daquela geração oprimida. Levar a cabo esse desejo é uma missão de todos.




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